As câmeras estavam programadas para filmar por apenas oito minutos.
"Ah, não vai demorar tanto assim", disse Dan Feyer, insinuando um sorriso.
Arrogância, talvez? A pressão estava montada.
Feyer, 33 anos, um músico calvo e de fala mansa, estava num estúdio fotográfico do "New York Times" para demonstrar um de seus talentos mais esquisitos.
Com o relógio marcando e as câmeras rodando, ele pegou o jogo de palavras-cruzadas.
Não um jogo qualquer, mas o da edição de sábado do "New York Times" - o mais difícil da semana, notoriamente ardiloso e inteligente.
Até mesmo diabólico, diriam alguns.
Uma forma de crueldade mental.
Existem pessoas que passam horas nesse jogo, pessoas que desistem, pessoas que nem chegam perto.
E então existe Dan Feyer.
Sua mão esquerda varria as dicas enquanto a direita se agitava pela grade.
Ele apertou os lábios e fez uma careta.
Apagou algo, e rapidamente preencheu mais quadrados.
Em seguida fez uma pausa, apagou de novo, e voltou a se agitar.
Quase cinco minutos haviam se passado, e ele ainda parecia estar trabalhando no canto superior esquerdo do jogo - geralmente o início.
Ele murmurou algo e apagou mais três vezes.
Estaria em apuros? Ele escreveu alguma coisa, levantou os olhos, largou seu lápis.
Pronto.
Cinco minutos e 29 segundos.
A caligrafia, clara como a de uma freira.
Feyer, usando jeans, tênis e uma camiseta preta, nem transpirava.
Quem é esse sujeito? Que tipo de pessoa sabe o nome da esposa de Gorbachev (Raisa), um sinônimo para desprezível (ignóbil), o treinador dos Rangers em 1994 (Keenan), um elemento do grupo da platina (irídio) e o significado de objurgação (repreensão)? Resposta: o tipo de pessoa que faz 20 palavras-cruzadas por dia (pelo menos 20 mil nos últimos três anos), que venceu o Torneio Americano de Palavras-Cruzadas deste ano e que tem 100 mil palavras-cruzadas armazenadas em seu computador.
"Sinto que quero resolver todas elas, de alguma forma", disse Feyer.
"Eu provavelmente fiz mais palavras-cruzadas do que qualquer outra pessoa no mundo, durante os três últimos anos.
Não sei se isso é algo de que se orgulhar, mas é uma reivindicação de fama".
Ele tem outra vida, como pianista e diretor musical para produções teatrais.
Seus espetáculos mais recentes foram "With Glee", apresentado off-Broadway em Manhattan no último verão, e "Dracula, a Rock Opera", apresentado em Rochester, Michigan, em outubro.
"O diretor musical ensina as músicas aos atores, acompanha-os nos ensaios e conduz a banda", explicou Feyer.
"Na Broadway, diretor musical é o cara com a batuta no fosso da orquestra.
No circuito off-Broadway, é o cara sentado ao piano, conduzindo com a cabeça".
Então como esse cara se tornou um ás das charadas? Além de treinar como um atleta, disse Feyer, o que ajuda é ter "um poder cerebral de base e uma boa cabeça para trivialidades".
Ele sempre tirou notas altas, sobressaindo-se em matemática e música - habilidades que, segundo ele, andam lado a lado com as palavras-cruzadas.
O que as três coisas têm em comum, disse ele, é o reconhecimento de padrões - enquanto começa a preencher uma linha da grade, ele começa a reconhecer possibilidades para as outras palavras, mesmo sem olhar para as dicas, baseando-se apenas em algumas letras.
"Em grande parte do tempo, pessoas que fazem palavras-cruzadas são músicos", afirmou ele, apontando que Jon Delfin, que venceu o torneio sete vezes, é pianista e diretor musical.
"Matemáticos e cientistas da computação também são criadores".
Arthur Schulman, criador de palavras-cruzadas e professor aposentado de psicologia da Universidade da Virginia, que apresentou um seminário chamado "The Mind of the Puzzler" (A mente do solucionador de charadas, em tradução livre), concorda que existe uma forte correlação entre a habilidade com palavras-cruzadas e o talento para matemática e música.
Segundo ele, tudo envolve trabalhar com símbolos que, sozinhos, não possuem significado.
"Há uma conexão básica, mas não estou certo de qual poderia ser", disse Schulman.
"É encontrar significado na estrutura".
Feyer é um relativo novato no mundo das competições de palavras-cruzadas, embora gostasse de todo tipo de charadas desde a infância, quando seus pais lhe deram livros de passatempos para compensar por seu tédio na escola.
Ele cresceu em São Francisco, onde seu pai é advogado municipal de uniões e sua mãe é professora de direito.
Ele tem dois irmãos mais novos - um é consultor gerencial, e o outro é professor de inglês no Butão.
Seu avô, George Feyer, era pianista, e tocou durante décadas nos salões dos mais elegantes hotéis de Manhattan.
Feyer fez faculdade em Princeton, formando-se em música.
Ele resolveu palavras-cruzadas algumas vezes ao longo dos anos, mas não se apegou realmente a elas até ver o filme "Wordplay", de 2006, um documentário sobre palavras-cruzadas, o torneio e Will Shortz - editor de passatempos do "New York Times" e fundador e diretor do torneio.
"Eu não imaginava que existisse todo esse mundo das charadas", disse ele.
Ele comprou um livro de palavras-cruzadas, e então mais um, e começou a acompanhar blogs de palavras-cruzadas e a baixar jogos.
Antes que pudesse perceber, havia se tornado um dos aficionados.
Em 2008 ele entrou em seu primeiro torneio, no qual centenas de pessoas, num salão de baile de hotel, corriam para terminar uma série de palavras-cruzadas.
Ali estava seu nicho: o som de 700 pessoas virando páginas ao mesmo tempo o deixou extasiado.
Ele ficou em "quinquagésimo alguma coisa", disse.
Mas isso o colocou no topo da divisão de novatos à qual ele havia se classificado.
No ano seguinte, ficou em quarto.
Neste ano ele venceu, superando muitos veteranos, incluindo Tyler Hinman, o campeão dos torneios anteriores.
Seu cérebro é apinhado de factoides: nomes de músicas e bandas de rock que viveram e morreram antes de seu nascimento, os mais remotos rios e capitais, equipamentos de esportes estrangeiros, astrônomos falecidos, monarcas depostos, carros extintos, filmes antigos, heróis da mitologia, romancistas obscuros e os incontáveis outros fantasmas que assombram as mentes dos criadores de palavras-cruzadas.
Ele aprendeu seus astutos truques e armadilhas, como usar "number" (inglês para "número") numa dica em que a maioria das pessoas interpretaria como "numeral", mas na verdade querendo dizer "more numb" (inglês para "mais entorpecido", que também pode ser "number").
Ele quase foi desmontado recentemente, por uma dica pedindo por um tipo de roda.
A resposta: raio de roda.
"Passei maus bocados com essa", contou ele.
Cruel? Talvez, disse ele, mas deu de ombros e acrescentou, "Os sábados estão aí para isso".
Toda manhã, ele completa meia dúzia de palavras-cruzadas inéditas e mais algumas da coleção armazenada em seu computador.
As mais fáceis lhe tomam apenas dois ou três minutos.
Ele faz palavras-cruzadas enquanto anda de metrô e enquanto vê TV.
Ele pode fazer mais algumas antes de dormir, e até mesmo levar uma para a cama.
Ele disse que, atualmente, gasta cerca de uma hora por dia com palavras-cruzadas.
"Elas não tomaram conta da minha vida, ou algo assim", disse ele, e acrescentou: "Eu não acho".
Mesmo assim, em seu blog, Feyer descreve a si mesmo como "um músico calmo que desenvolveu um vício por palavras-cruzadas", e posta diariamente suas soluções.
Existe, segundo ele, uma competição amigável entre os principais solucionadores.
Para um jogo de segunda-feira no "New York Times", seu melhor tempo no computador foi de um minuto e 22 segundos.
No papel demora mais, um minuto e 58 segundos, talvez 59.
Seu melhor tempo de todos foi um minuto e nove segundos, para um jogo da "Newsday".
Mas ele admite que, na resolução rápida, você pode perder o momento "a-há!", e a chance de saborear uma solução inteligente.
Outro músico que trabalha na publicação de charadas ajudou Feyer a entregar trabalhos de edição e revisão, como free-lancer, para uma empresa que produz livros de passatempos, e o cadastrou para escrever um livro de caça-palavras.
Ele tentou trabalhar na criação de palavras-cruzadas, mas decidiu que, assim como se sai melhor tocando ou dirigindo músicas do que compondo, ele é melhor em resolver charadas do que em criá-las.
Mesmo assim, ele conseguiu vender algumas palavras-cruzadas, incluindo uma para o "Times"; ela será publicada numa terça-feira, um dia relativamente fácil (as palavras-cruzadas do "Times" ficam mais difíceis a cada dia, com a mais fácil na segunda-feira e a mais complexa no sábado).
Ele levou 20 horas para criá-la, parando e retomando durante seis meses.
O jornal paga 200 dólares por um jogo diário de palavras-cruzadas (ou mil dólares para o jogo grande de domingo).
Podendo escolher, ele prefere resolver palavras-cruzadas num computador.
Em competições, porém, os jogos são feitos em papel, onde as dicas são organizadas de maneira um pouco diferente.
Assim, à medida que se aproxima o torneio anual (o próximo ocorrerá em março de 2011), ele troca para o papel para estar com seu jogo afiado.
Caso contrário, disse ele, "você pode perder preciosos segundos procurando pelas dicas".
Ele escreve com uma lapiseira, do mesmo tipo que usa para marcar partituras musicais.
Ele pretende competir de novo.
"Definitivamente tentarei defender o título", afirmou ele.
Ganhar é divertido, mas é também, segundo ele, "a única forma de ganhar dinheiro com este hobby".
O primeiro prêmio é de US$5 mil.
Ele expressa uma raiva zombeteira ao dizer que os torneios de sudoku pagam bem mais - US$20 mil.
"Não sou muito bom em sudoku", explicou ele.
Ele não joga Scrabble (um tipo de jogo de tabuleiro que envolve formação de palavras).
Esse jogo difere das palavras-cruzadas no tipo de palavras usadas.
"Se eu tentasse memorizar também a lista do Scrabble, isso provavelmente arruinaria minhas chances no campeonato", disse ele.
"Meu cérebro está repleto de vocabulário de palavras-cruzadas".
Ele imagina já ter visto praticamente tudo que poderia aparecer em palavras-cruzadas.
Mesmo assim, continua colecionando-as.
"Algum dia", disse ele, "terei feito todas elas".
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O.O Vivemos num mundo estranho, Charlie Brown...
Fonte Yahoo Notícias