sexta-feira, 1 de abril de 2011

Piloto pioneira morreu esquecida

(Março, Mês Internacional da Mulher) – Mariette Helene Delangle nasceu em uma aldeia a 47 quilômetros de Paris em 15 de dezembro de 1900. Helene aos 16 anos muda-se para a “Cidade Luz” com a mala cheia de sonhos e ambições.

Tornou-se uma atriz e dançarina do Casino de Paris com o nome artístico de Helene de Nice e se tornou Hellé-Nice (em inglês nasce o trocadilho, intencional). Conquista o sucesso e a popularidade, contrata empresário, vira modelo, posa nua, enriquece rapidamente, adquire uma casa luxuosa e um iate. Transforma-se em celebridade em toda a Europa.

Apaixonou-se pelos automóveis velozes e levou uma vida, digamos, “fácil”. Seus relacionamentos eram breves, o fato de ser rica e bem sucedida afastava os pretendentes. Houve alguns que duraram mais tempo, mas lhe trouxeram resultados, como notáveis da época, caso do poderoso Barão Philippe de Rothschild (banqueiro, piloto de corridas, escritor, produtor teatral, vinicultor etc.) membros da nobreza europeia e personalidades, Gianoberto “Jean” Maria Carlo Bugatti, filho mais velho de Ettore Bugatti e o Conde Bruno d'Harcourt, piloto de grandes prêmios da equipe Bugatti.

Na Paris daquele tempo organizavam-se numerosas competições de automóveis, e Hellé participou de um organizado para as celebridades da época, pilotando um carro de corridas, tomou gosto. Hellé era uma mulher atlética e gostava de esquiar, sofreu um acidente que danificou seus joelhos, ficou impossibilitada de dançar e direcionou os seus interesses com mais força para o automobilismo profissional. Em 1929 participa do Grande Prêmio no Autódromo de Montlhéry competindo na prova de velocidade na terra all female (só para mulheres) a bordo de um Omega-Six ela vence a corrida e bate o recorde. A partir desta grande vitória Hellé ganha fama e prestígio no mundo da velocidade na terra. No ano seguinte, segue para os Estados Unidos competindo em várias pistas pilotando um automóvel americano Miller.

Ao retornar para Paris em um café no Champs-Élysées, o Barão Philippe de Rothschild aproxima-se e se apresenta, tornam-se amantes. Rotschild pilotava Bugatti's nas corridas e apresenta a Hellé o sofisticado Ettore Bugatti, um dos mais exclusivos fabricantes de automóveis franceses de todos os tempos. Ettore Bugatti vê em Hellé-Nice a oportunidade de introduzi-la nas corridas para competir no mundo masculino.

Sonho de correr

Hellé realiza o seu sonho em 1931 pilotando um Bugatti T37 A, estreando no Circuit Du Dauphiné em Grenoble, larga e sétimo e mantém a posição até o final. Neste mesmo ano participa de cinco Gran Prix da França e também na mais importante corrida de toda a Europa o Gran Premio di Monza.

Ela ama cada minuto de sua vida principalmente pelo fato de estar competindo entre os melhores pilotos da atualidade sem perder a feminilidade. Seus resultados são significativos, chegando à frente dos grandes pilotos. Os anos passam e Hellé confirma seu talento nos grandes prêmios como a única mulher nos circuitos, ela prossegue correndo com Bugatti e Alfa Romeo, atrapalhando a vida de pilotos como Tazio Nuvolari, Robert Benoist, Rudolf Caracciola, Louis Chiron, Bernd Rosemeyer, Luigi Fagioli e Jean-Pierre Wimille. Como a maioria dos pilotos, ela não somente compete nos grandes prêmios, mas também em outras provas na Europa como hillclimbs e rallies, incluindo o famoso Rally de Monte Carlo. Um hábito curioso de Hellé ao pilotar era de manter a boca aberta durante a corrida, é provável que tenha engolido muitos mosquitos durante a sua carreira.

Até 1936, a piloto engrossa sua participação em competições. Nesse mesmo ano, Hellé vem ao Brasil para o IV Grande Prêmio da Cidade do Rio de Janeiro (Circuito da Gávea). Mais conhecido com “Trampolim do Diabo” o Circuito da Gávea por suas mais de 100 curvas em piso irregular era o verdadeiro teste de perícia para qualquer piloto. Esta prova marcou a vinda de pilotos importantes, competidores de grande peso nas corridas internacionais.

Em 12 de julho, Hellé-Nice corre no I Grande Prêmio Cidade São Paulo, a corrida mais marcante da história no Brasil, não somente por ter sido a primeiro grande premio da cidade de São Paulo, mas por ter ocorrido o acidente mais grave o que impulsionou a construção do Autódromo de Interlagos. Como o Rio de Janeiro realizava seus grandes prêmios na Gávea desde 1933, São Paulo decide entrar para o circuito com o objetivo de trazer igualmente nomes importantes do automobilismo internacional. Esta corrida é realizada um mês após o GP do Rio de Janeiro qual Hellé-Nice participou.

Em apenas quarenta e cinco dias, as autoridades paulistas e o Automóvel Clube Brasileiro idealizaram e concretizaram este evento internacional, foram adquiridos oito mil metros de cordas para separar os espectadores dos carros e montadas arquibancadas para sete mil pessoas, conta-se que o público atingiu o numero de cem mil espectadores no Jardim América.

Hellé-Nice pilotava seu Alfa Romeo azul, mas não integrava a equipe Alfa Romeo, era uma corredora independente. O grid de largada foi idealizado na formação 3-2-3 e a ordem de largada foi por sorteio, Hellé-Nice ocupa a sétima fila ao lado de Domingos Lopes (BR) e Carlo Pintacuda (ITA).

A corrida

Saindo da décima posição, Chico Landi passa à frente na primeira volta. Da mesma maneira espetacular, o favorito Pintacuda passa em oitavo e a badalada Hellé-Nice em terceiro, enquanto Marinoni, mais discreto, em 15º lugar.

Marinoni roda, cai para último, mas na quarta volta já é o 2º com Pintacuda liderando desde a volta anterior. A pouca potência do Fiat de Chico Landi o renegou ao 5º posto.
O italiano Marinoni roda de novo entre a Rua Canadá e Av. Brasil, danifica seu carro e perde posições ao ter que descer do carro para fazê-lo prosseguir na prova.

Com isso, a sensação Hellé-Nice assume o 2º posto seguida do brasileiro Manuel de Teffé. Na 6ª volta, o líder Pintacuda começa a se afastar dos outros concorrentes, enquanto a segunda colocada, Hellé-Nice, passa a ser pressionada por Teffé. Hellé-Nice para na 50ª volta para por gasolina e água, o que a faz perder o 3º posto para Teffé na 52ª volta. A partir daí, a francesa tem 30" de desvantagem para o brasileiro e novamente empolga a multidão com seu desempenho. Faltavam somente quatro voltas para o final, e Hellé-Nice tirava 5" por volta sobre Teffé!

Depois da reta oposta, Hellé-Nice tinha 5" de desvantagem para Teffé e continuava a se aproximar do brasileiro em busca da 3ª posição. Ambos tinham duas voltas de desvantagem para o líder e uma para o 2º colocado. Na curva da Av. Brasil esquina da Rua Atlântica, Teffé abriu demais, perdeu tempo e Hellé-Nice emparelhou com ele. Ao entrar na reta final da Av. Brasil, Teffé ganhou distância. Atravessaram a Rua Colômbia. Às 11h59min, Pintacuda atingiu a linha de chegada para vencer a prova a uma média de 104,45 km/h. Aí a população se agitou para melhor enxergar a disputa entre Teffé e Hellé-Nice, pelo 3º lugar.
Faltavam poucos metros para a chegada, quando Teffé foi para o lado direito da pista.

O acidente

A grande emoção estava reservada para o final da prova quando Hellé-Nice disputava o terceiro lugar com Manuel de Teffé, forçando a ultrapassagem em diversos pontos do trajeto. Em uma dessas tentativas as rodas dos carros se tocaram e Hellé-Nice decolou com seu Alfa Romeo sobre o público presente.

A consequência foi desastrosa, três mortos e 30 feridos. Entre as vítimas fatais, um soldado que absorveu o impacto do corpo de Hellé-Nice na queda ao ser lançada dez metros para fora do carro.

As versões sobre este acidente suscitam discussões até hoje. Segundo Wilson Fittipaldi, pai de Emerson e Wilsinho, que estava presente na época com 16 anos, Manuel de Teffé fechou de maneira irregular o carro de Hellé-Nice, provocando o acidente "Ele não admitia ser ultrapassado por uma mulher”. Outras versões chegam a citar um fardo de feno jogado no meio da pista ou um espectador que a teria atravessou, Hellé-Nice tentou e perdeu o controle do carro.

Hellé-Nice ao depor não se lembrava do momento do acidente. Ela teve concussão cerebral, escoriações no rosto, contusão no cotovelo e na região escapular. Foi internada no Sanatório Santa Catharina, com boa recuperação e, dias depois, recebeu alta médica.

Apesar das acusações contra Manuel de Teffé, formalizada também pelo mecânico de Hellé-Nice, o brasileiro não foi considerado culpado. Devido ao acidente e ao fato de alguns carros que não poderem cruzar a linha de chegada, somente seis carros foram oficialmente classificados. Helle ficou com o 4º lugar.

A repercussão do acidente no Brasil

Diversas entidades e órgãos do estado se manifestaram em solidariedade às vitimas e parentes das vítimas do acidente. Organizaram arrecadações para doar a todos envolvidos e a Hellé-Nice, inclusive para a recuperação de seu automóvel. Um site inglês cita que as autoridades brasileiras se responsabilizaram pelo acidente, falta de segurança, pagando uma grande soma indenizatória à piloto francesa. Segundo informações de contatos do meio antigomobilista, o Alfa Romeo de Hellé-Nice permaneceu no Brasil, apreendido pelo DETRAN de São Paulo. Um conhecido colecionador paulista adquiriu o automóvel. Com as partes que sobraram construiu um híbrido e o restante das peças que se pulverizaram estão em um museu no interior paulista.

Hellé-Nice é vista como heroína pelo povo brasileiro, seu pseudônimo foi disputado pelas futuras mães que a homenagearam registrando suas filhas como Helenice ou Elenice.

As tentativas para voltar a correr os grandes prêmios

O terrível acidente em São Paulo marcou definitivamente a vida de Hellé-Nice, mas com o passar do tempo ela começou a arquitetar a sua volta às pistas. Em 1937 ela arrisca a sua volta na esperança em participar da Mille Miglia na Italia e no Trípoli Grand Prix na Líbia, este último oferecia uma grande soma em dinheiro como prêmio. Encontrou sérias dificuldades em obter apoio suficiente para oficializar o seu retorno.

Às vésperas da Segunda Guerra Mundial, Hellé-Nice retoma as competições participando do trial endurance para mulheres organizado pela companhia petrolífera Yacco em Montlhéry na França. Seu desempenho é notório. Guiou por dez dias e dez noites, quebrando dez recordes em um mesmo dia. Nesta prova Hellé se revezava com mais quatro mulheres.

Pelos próximos dois anos ela competiu em ralis na esperança de voltar a correr pela Bugatti. No entanto, em agosto de 1939 seu grande amigo Jean Bugatti morre em um acidente ao testar um novo modelo Bugatti. Um mês depois, começou a Segunda Guerra Mundial. Em 1943 durante a ocupação das tropas nazistas na França, Hellé-Nice se recolhe em sua residência em Paris, mas a sua vida torna-se insuportável e ela decide fixar residência em Nice. Leva consigo um de seus amantes durante todo o período da guerra.

O início do fim de Hellé-Nice

Em 1949 é anunciado o primeiro Rallye de Monte Carlo do pós-guerra e Hellé-Nice se inscreve para a prova, sua grande chance de voltar segura e confiante. Em uma grande festa organizada para comemorar a volta da competição, Louis Chiron, o filho predileto de Mônaco, várias vezes campeão de Gran Prix, repentinamente atravessa o salão e em voz alta acusa Hellé-Nice de ser colaboradora da Gestapo durante a guerra. Naquele tempo uma acusação como essa poderia arruinar a carreira de qualquer um, vindo do poderoso Louis Chiron era muito pior, não havia nem a necessidade de apresentar provas.

A consequência foi a pior possível, Hellé não conseguiu participar deste rali, perdeu patrocinadores, os amigos, conhecidos e o amante a abandonaram completamente, seu sócio suíço investiu mal o seu dinheiro. Seu nome caiu no esquecimento assim como toda a sua história de vitórias e feitos notáveis desapareceram por completo, ela foi varrida da memória de todos.

Em sérias dificuldades financeiras foi obrigada a aceitar a caridade de uma organização de Paris, La Roue Tourne, criada para dar assistência aos artistas do teatro antigo em estado de abandono. A situação de Hellé-Nice piorou quando morre sua mãe e sua irmã mais nova, Solange, toma posse dos bens, o que não é muito, negando totalmente auxílio a Hellé-Nice.

Uma mulher que brilhou como poucas no século XX, pioneira e corajosa, participou de mais de setenta provas automobilísticas, passou seus últimos anos de vida em um apartamento invadido por ratos num beco da periferia de Nice, por vergonha e medo em ter sua identidade descoberta, usava um nome fictício. Afastada da família por anos, em 1984 aos 84 anos de idade morreu sem amigos, sem dinheiro e completamente esquecida pelas pessoas ricas e fascinantes que integravam os Grandes Prêmios da França. Mariette Helen Delangle foi cremada, a organização parisiense de caridade custeou a cremação e enviou as cinzas para sua irmã na aldeia de Saint-Mesme onde seus pais estavam sepultados.
No tumulo da família o nome de Hellé-Nice não está mencionado na lápide. As acusações de Louis Chiron nunca foram comprovadas. A escritora Mirnada Seymour, autora da biografia de Hellé-Nice, pesquisou a fundo a procedência desta acusação. Em documentos oficiais enviados por Berlim pelas autoridades alemãs, Hellé-Nice nunca foi uma agente da Gestapo.

O caluniador

O causador de toda esta desgraça na vida de Hellé-Nice, o piloto Louis Chiron, que dividiu a pista com ela em diversas competições, nunca pagou pelo seu crime. Com essa atitude repulsiva, fica claro seu preconceito e a inveja em relação a Hellé. Chiron era conhecido por sua arrogância e egocentrismo. Existe uma citação da ira de Chiron por ela ter vivido em relativo luxo na Riviera Francesa durante o período da guerra. O piloto, por ter sido membro da Resistência Francesa, direcionou suas suspeitas para Hellé-Nice.

Impune, esse senhor corre pela última vez no Grande Premio de Mônaco, em 1955, e conquista o recorde como o piloto mais idoso a participar de um campeonato mundial, aos 55 anos de idade.

O livro e a Fundação Hellé-Nice

Graças à escritora norte- americana Miranda Seymour, o mundo começa a conhecer a apaixonante história da espetacular Mademoiselle Hellé-Nice. O livro The Bugatti Queen, lançado em 2004, despertou o interesse da mídia e inspira projetos como a The Hellé-Nice Foundation, criada em 2008 por Sheryl Greene, em Atlanta, nos Estados Unidos. Esta fundação visa captar recursos para financiar jovens mulheres que queiram iniciar a carreira de pilotos no automobilismo.

Este artigo é intencionalmente publicado no mês de março em homenagem ao Dia Internacional da Mulher. A todas as mulheres que ousam superar seus próprios limites, deixando marcas como exemplo de determinação e coragem, nosso muito obrigado.

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Fonte: Revista Web Motors
Essa é minha pequena homenagem à Dona Helle Nice, mãe da Ana, minha ex-esposa... Que Deus a tenha em bom lugar, por que ela merece...

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